Sem deixar o humano de lado, oncologia se une à tecnologia para ir além
Oncologia de precisão já transformou a especialidade, enquanto a inteligência artificial promete outros passos adiante
Um algoritmo treinado por machine learning analisa sete marcadores tumorais a partir de cinco mililitros de sangue e é capaz de detectar, com cerca de 93% de precisão, se um indivíduo tem ou pode ter nove tipos de cânceres diferentes. Robôs e nanorrobôs que podem ser utilizados como ferramentas de cirurgias oncológicas ou como equipamentos de alta precisão para sessões de radioterapia em locais de difícil acesso. Máquinas que analisam as células de uma área em investigação, identificando o que pode haver de suspeito na região.
Essas são algumas tecnologias que já estão sendo utilizadas no enfrentamento do câncer. Com a velocidade que surgem, novas ferramentas têm sido aplicadas e outras tantas inovações têm sido pesquisadas, criadas e utilizadas todos os dias, em todas as áreas do saber. E a saúde e a medicina, campos nos quais o impacto das novidades é importante para o bem-estar da população, muitas vezes têm liderado os avanços científicos.
Durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, aplicativos de celular foram capazes de apontar se um sujeito estava ou não em sepse. Isso se dava através da identificação, por algoritmos, de distinções no padrão respiratório, no tom de voz ou no tempo do deslocamento dos dedos entre as teclas do celular.
“Sempre acredito que as tecnologias estão muito mais distantes e avançadas do que suspeita nossa vã filosofia. Provas são esses instrumentos que já existiam e apareceram na pandemia”, comenta Dr. Nivaldo Farias Vieira, especialista em Transformação Digital pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e membro do Comitê de Tecnologia e Inovação da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).
Esse grupo foi criado em 2024, após a identificação do uso crescente de recursos tecnológicos na oncologia e da necessidade que os associados tinham de poder debater essas novidades. “Por isso, estruturamos este novo Comitê, que deverá nos apoiar muito em um futuro próximo e já tem nos ajudado na organização da programação do XXV Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, que terá como tema a humanização na era digital”, explica a presidente da SBOC, Dra. Anelisa Coutinho.
Mudança de paradigma
Os computadores e a internet mudaram em poucas décadas a forma de a sociedade lidar com o mundo e, pela velocidade com que se estabeleceram, separaram a população atual entre os nativos e os não-nativos digitais. Ou seja, entre aqueles que viveram um mundo anterior à era digital e os que já nasceram nela.
Segundo Dr. Nivaldo, o acesso disseminado à informação transformou também a medicina. “Os médicos precisam entender que não têm mais o papel de originador do saber, mas de curador”, diz. “A cada 42 dias, o conhecimento médico dobra e é necessária a criação de um novo mindset. O que antes era ‘sólido, guideline, orientação precisa’ virou ‘aquilo que se sabe agora conforme as fontes que consegui pesquisar nesse momento’”, acrescenta.
Nos últimos anos, tem sido acelerado o desenvolvimento da inteligência artificial generativa, ferramenta que, na visão do Dr. Bruno Wance, também integrante do Comitê de Tecnologia e Inovação da SBOC, tem uma peculiaridade: diferente de outras tecnologias, ela já nasce nas mãos dos usuários, sejam eles pacientes, profissionais ou colaboradores do ecossistema da saúde.
O conceito de high tech e high touch (de alta tecnologia e de alto manejo) ajuda a entender essa forma de enxergar o futuro. “A medicina é uma dessas áreas. Você precisa dos remédios e exames, que são o tech. Mas sem o touch a medicina não acontece. É do ser humano interpretar os dados disponíveis e conversar com o paciente”, resume Dr. Nivaldo Vieira.
“O processo de alfabetização digital vai ser fundamental para nós. Precisamos conhecer as tecnologias, as melhores práticas e suas armadilhas, pois iremos certamente cada vez mais interagir com ferramentas e algoritmos de inteligência artificial, bem como responder a questionamentos vindos diretamente dos nossos pacientes ou até mesmo de juízes”, defende Dr. Bruno Wance.
Aprofundar-se no mundo tecnológico não significa, porém, abandonar o lado humano na visão dos especialistas. Coordenador do Comitê de Tecnologia e Inovação da SBOC, Dr. Pedro Henrique de Souza, acredita que se pacientes e profissionais da saúde participarem ativamente do desenvolvimento de novas tecnologias, o cuidado será aprimorado sem nenhum prejuízo ao lado humano. A medicina, entende ele, é baseada nesta relação entre indivíduos. A tecnologia, por outro lado, viria apenas para facilitar aquilo que os médicos fazem: cuidar.
Luana Vieira (à esquerda) é enfermeira e Simone Bastos (à direita) é atendente de um serviço de oncologia em Salvador (BA). Elas cederam o uso das suas imagens, gratuitamente, para a SBOC.
A oncologia de precisão já é uma realidade no mundo todo.
Coordenador do Comitê de Tecnologia e Inovação da SBOC, Dr. Pedro Henrique de Souza fala sobre uso da tecnologia na oncologia no Congresso SBOC 2023.
Aplicação na oncologia Para o coordenador do Comitê de Tecnologia e Inovação da SBOC, a evolução tecnológica tem impactado a oncologia em duas grandes frentes. A primeira é a utilização das ferramentas de precisão. “Por meio de exames que refletem o comportamento biológico de cada doença, é possível identificar, para cada paciente, o melhor tratamento a ser usado e momento ideal para isso, mudando completamente o cuidado com alguns tumores”, explica.
E a segunda é a utilização da inteligência artificial. “Hoje, ela é mais usada no apoio aos diagnósticos, seja com patologia digital ou radiologia, mas com a quantidade gigantesca de dados clínicos e biológicos gerados, desde o diagnóstico até o tratamento do câncer, cada vez mais vamos gerar conhecimento com essa ferramenta, para analisar dados de mundo real”, detalha.
Esse avanço poderá resultar em um futuro completamente novo no cuidado oncológico, avalia Dr. Pedro Henrique de Souza. “Maior capacidade de predição, identificação precoce de pessoas com risco de desenvolver câncer, desenvolvimento mais rápido de drogas e menos custo”, resume.
Sobre o panorama atual, Dr. Bruno Wance questiona: “Quem poderia imaginar que iríamos agilizar e baratear de forma tão rápida os testes de sequenciamento genômico? Em 2003, o Projeto Genoma Humano custou US$ 450 milhões e demorou mais de 10 anos para ser concluído. Hoje, o sequenciamento de um genoma humano leva apenas alguns dias e custa em torno de US$ 1.000”.
Os oncologistas serão liberados de tarefas burocráticas e poderão se dedicar àquilo que realmente apenas os seres humanos são capazes, como escuta ativa, acolhimento, empatia, tomada de decisão compartilhada
A oncologia de precisão, prática para qual o sequenciamento é fundamental, tornou-se uma realidade no mundo inteiro e no Brasil, com cada vez mais testes moleculares disponíveis para melhor caracterização prognóstica e preditiva de resposta aos tratamentos. “Ainda temos, claro, disparidades abissais no acesso a essas tecnologias quando falamos de países de baixa e média renda e serviços públicos de saúde”, contrapõe Dr. Bruno Wance.
Dr. Nivaldo concorda que a tecnologia e a inovação trarão melhores condições assistenciais para a oncologia, mas pondera que continuaremos com o desafio de democratizar os novos recursos. “Hoje, o acesso às tecnologias de ponta ainda é muito restrito. Para que as disparidades diminuam, temos que pensar em desmonetizar e buscar meios tecnológicos para cuidados a custo zero”, avalia.
Confira vídeo gravado durante o Congresso SBOC 2023, no qual o Dr. Pedro Henrique de Araújo de Souza, coordenador do Comitê de Tecnologia e Inovação da SBOC, aborda o tema, focando nas possibilidades de inovação e de análise de dados na área da saúde:
Esqueceu a sua senha?Altere no site da SBOC, clique aqui