Diversidade étnica e outros desafios relacionados à prática oncológica ganham destaque no 2º dia do Congresso
A diversidade étnica e outros desafios relacionado ao enfrentamento do câncer ganharam destaques na programação do 2º dia do XXIII Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, que termina neste sábado (5) na cidade do Rio de Janeiro.
Com muito engajamento do público e emoção dos palestrantes, a sessão sobre diversidade contou com duas mesas, ambas coordenadas pela Dra. Ana Amélia de Almeida Viana, e mais de 10 participantes entre moderadores e palestrantes, refletindo a busca da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) por uma entidade mais diversa e inclusiva.
A organizadora enfatizou a necessidade de o tema ser debatido em todas as instâncias da sociedade, inclusive entre os médicos. “Quando falo sobre racismo em saúde nas redes sociais, há poucos comentários e curtidas. As pessoas têm dificuldade de interagir com essa verdade. Mas estamos apenas começando a falar sobre isso, a enxergar e desvendar essa realidade”, comentou.
Por isso, defendeu a oncologista clínica, é preciso que exista uma reflexão coletiva sobre o tema, uma vez que os profissionais de medicina e de saúde estão comprometidos com a excelência do atendimento, algo incompatível com práticas que perpetuam atitudes discriminatórias. “O racismo impacta na vida dos pacientes. Práticas simples de atendimento de forma integral podem salvar vidas e impactar muito nossa população”, indicou Dr. Ana Amélia.
Isso ficou claro durante a palestra de Lilian Ribeiro, jornalista da GloboNews e paciente de câncer de mama. Ela relatou sobre sofrimentos pelos quais passou durante o seu tratamento, desde a questão da autoestima pela queda de cabelo à falta de pessoas negras nas instituições de saúde, além de um caso de racismo e intolerância religiosa do qual foi vítima nas redes sociais, por conta do lenço que vestia durante a condução de um jornal.
Essas chamadas “micro agressões”, inclusive, foram abordadas pelo clínico geral Dr. Júlio Cesar de Oliveira, que começou colocando o termo em discussão. “As agressões são ‘micro’ apenas para quem não percebe que faz. Para quem recebe, não tem nada de micro”, afirmou.
A sua tentativa foi de mostrar que o racismo se reproduz entre os médicos e na área da saúde por conta de um mecanismo chamado de “viés racial implícito”. Isso nada mais é do que os nossos pré-conceitos sobre a sociedade sendo processados rapidamente, sem análise, o que leva a ações que muitas vezes quem comete nem ao menos identifica o que faz.
“Falar em raça no Brasil é falar em quatro séculos de escravidão e pouco mais de um século sem escravidão. E temos uma sociedade atual que mantém muito da estrutura escravista. Por isso, o viés implícito está dentro de nossa sociedade”, explicou o clínico geral.
Esse viés, mostrou o palestrante, pôde ser mensurado em diversos estudos. Na área da oncologia, por exemplo, já foram identificados artigos mostrando que o aconselhamento genético tem forte viés a favor de pacientes brancos e é mal comunicado com pacientes negros. Também foi identificada uma comunicação menos acolhedora e menos centrada no paciente, resultado em menor aderência ao tratamento.
Outro ponto abordado é que o viés racial está associado ao uso de palavras de dominância social, o que gera ansiedade aos pacientes negros. A influência também se dá com menos prescrição de opióides e menor discussão sobre dor no paciente negro com câncer metastástico.
Como foi discutido na mesa, ainda, o desfecho do tratamento de muitos tumores tende a ser pior nessa população por diversos fatores raciais, sociais, ambientais etc. Por exemplo: um recém-nascido negro tem 50% mais chances de sobreviver quando o médico também é negro, demonstraram os palestrantes.
Se há solução para tudo isso? Dr. Oliveira acredita que primeiro é preciso diminuir o racismo interpessoal (baseado nesse viés implícito). A partir daí será possível diminuir o racismo dentro das instituições. E somente então se poderá diminuir o racismo estrutural, que permeia toda a sociedade – inclusive a própria população negra, como frisou.
Dra. Abna Vieira acredita que a representatividade pode ser outro passo nessa direção. “É quando reconhecemos nossos iguais. Temos estudos que mostram que os pacientes seguem mais recomendações de médicos da mesma cor que ele”, disse a oncologista clínica. “Além disso”, completou, “quando você é médico, você trabalha com evidências científicas. Quando você combate o viés implícito, o paciente tem melhor desfecho.”.
Nesse sentido, a psicóloga Márcia Regina Lima Costa convidou à plateia para tomar atitudes em relação a esse problema e sintetizou, citando o jurista Silvio Almeida: “Todo o racismo é estrutural, pois o racismo não é um ato. O racismo é o processo em que as condições de organização da sociedade reproduzem a subalternidade de determinados grupos que são identificados racialmente”.
Desafios: cenário atual da oncologia
Outro tema relevante do dia foi a discussão sobre os desafios da prática oncológica hoje. O Dr. Cid Buarque Gusmão, por exemplo, comentou sobre a autonomia médica, que tem sido muito debatida com as incertezas que rodeiam as relações de trabalho na medicina.
“O elemento central da autonomia profissional e da independência clínica é a garantia de que os médicos individuais têm a liberdade de exercer seu julgamento no cuidado e tratamento de seus pacientes sem a influência indevida de partes externas, diz a Organização Médica Mundial [WMA, na sigla em inglês]”, relatou, dando ênfase ao adjetivo “indevida” e, portanto, admitindo que alguma influência pode existir na atuação do médico.
Um dos exemplos que o oncologista clínico deu é a consideração do profissional em relação aos recursos do sistema e das instituições em que está inserido. “Isso foi tema de grande parte do Congresso SBOC no primeiro dia. Podemos ter intervenção no trabalho, levando os recursos em consideração. Mas isso não pode ser injustificado, levando a uma limitação irracional”, argumentou.
O médico sanitarista Dr. Gonzalo Vecina Neto também discutiu sobre a questão da precarização das relações de trabalho correntes e lembrou que é um risco que a saúde caminhe por uma rota em que a perda da eficácia dos tratamentos seja aceita em nome de mais eficiência.
“Dentro da estrutura da categoria médica, conseguimos criar uma situação ética para as relações de trabalho entre quem é contratado via PJ [pessoa jurídica] e as instituições de saúde. Mas, por exemplo, na enfermagem essa relação é mais complicada. Quais são os limites da nova economia para ter mais eficiência? Esse é um tema em aberto que temos que pensar sobre”, disse Dr. Vecina Neto.
Ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Dr. Vecina Neto também defendeu que os médicos devem prezar pelo fortalecimento da atenção básica no Brasil, onde deveriam surgir as primeiras hipóteses diagnósticas de câncer no sistema público, já que não há oncologista – e outros especialistas – para dar esse tratamento em todas as localidades.
“Happy Poster”
No fim do dia, o Congresso SBOC 2022 contou com o “Happy Poster” – um momento descontraído para que os autores de trabalhos selecionados para divulgação em pôster apresentassem suas produções para os participantes do evento, enquanto petiscos e bebidas de happy hour foram servidas.
Segundo Dr. Jorge Sabbaga, coordenador da Sessão de Pôster do SBOC 2022, este ano os trabalhos submetidos apresentaram alta qualidade científica. A seleção dos resumos foi ainda mais criteriosa e a resposta, na avaliação do oncologista clínico, admirável, tornando árduo o trabalho de escolher apenas alguns entre tantos enviados.
Ao todo, foram 100 trabalhos aprovados para a exibição em formato de pôsteres. Das centenas de artigos submetidos para avaliação da Comissão Científica, outros seis foram distribuídos entre sessões de especialidades, enquanto cinco entre os melhores serão apresentados oralmente em plenária neste sábado (5).
Durante o segundo dia do evento também foram discutidas novidades sobre tratamentos de tumores gastrointestinais, ginecológicos, mamários, geniturinários, torácicos, câncer de cabeça e pescoço, sarcoma e melanoma, neoplasias neuroendócrinas, sexualidade dos pacientes com câncer, transformação digital, pesquisa clínica e mais!
Acesse a galeria de fotos do segundo dia de Congresso.