Em maio de 2023, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) enviou documento ao Ministério da Saúde e à Comissão Intergestores Tipartite (CIT), propondo um mecanismo de acesso efetivo de pacientes a antineoplásicos incorporados ao SUS. A proposta, que foi recentemente incorporada ao documento final da Conferência Nacional de Saúde, sugere a implementação de um algoritmo decisório baseado em informações apresentadas por grupos de trabalho e em discussões públicas. Esta ação da SBOC ressalta a necessidade de uma política efetiva para o cuidado dos pacientes já diagnosticados, a fim de garantir que nenhum deles fique sem acesso ao tratamento adequado e oportuno.
Chat GPT e inteligência artificial na oncologia: avanços e possibilidades
Nós oncologistas somos treinados a memorizar estudos clínicos e seus resultados de forma sistemática. Quando discutimos um caso clínico, nosso raciocínio sempre busca identificarem qual estudo o perfil do paciente se encaixa e, a partir de então, nos sentimos seguros e respaldados em nossas condutas. Citar artigos e mostrar nossa capacidade de memorizar e discutir a lógica da nossa conduta mostra nossa competência no tema e nos destaca perante outros colegas.
Em 2015, a IBM lançou o Watson for Oncology (WFO), um assistente de decisão através da inteligência artificial. O WFO foi desenvolvido pela IBM Corporation (dos Estados Unidos) com a ajuda dos principais oncologistas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center. A IBM investiu 4 bilhões de dólares no projeto e, em 2021, anunciou a saída do mercado da saúde.
Acredita-se que a falha da companhia foi focar na venda dos produtos, sem trabalhar a robustez de seu sistema, com metodologia correta e banco de dados não enviesados. Pessoalmente, acredito que os oncologistas associaram usar a ferramenta com a ideia de fragilidade de conhecimento: “Eu não preciso disso! Tenho todos os estudos na minha cabeça…”
Mais recentemente, grandes modelos de linguagem (LLM), como ChatGPT e GPT-4, estão fazendo progressos significativos em direção ao desenvolvimento da Inteligência Geral Artificial (AGI). Essas ferramentas, diferente do Watson, chegaram de forma mais democrática. Começamos a usá-las até como forma de recreação. O custo baixo facilitou sua disseminação não somente na medicina, mas em todas as áreas que possamos imaginar.
Desde o seu lançamento em novembro de 2022, o ChatGPT passou por extensos testes em uma variedade de disciplinas para garantir que funcione de forma natural e conversacional. Modelos de linguagem, como o ChatGPT, aumentaram consideravelmente e vem ajudando a educação e a pesquisa médica.
Uma das principais preocupações em relação à AGI na área da saúde é o risco de fornecer aconselhamento médico impreciso. Como o conteúdo gerado por IA é baseado em grandes quantidades de dados da internet, existe a possibilidade de que as informações fornecidas possam ser enganosas ou totalmente incorretas. Por exemplo, o ChatGPT pode oferecer sugestões de tratamento que estão desatualizados ou não são adequados para a condição específica de um paciente.
Tais imprecisões podem resultar em pacientes recebendo tratamentos inadequados ou até mesmo agravar seus problemas de saúde.
No entanto, quer esses avanços tecnológicos sejam uma bênção ou uma maldição depende de como eles são utilizados. Grandes modelos de linguagem podem ajudar na tomada de decisões clínicas e na educação médica. De acordo com uma pesquisa de Kung et al.1, o ChatGPT atingiu o nível de aprovação ou próximo a ele para todos os estágios dos Exames de Licenciamento Médico dos Estados Unidos.
Pesquisador da Universidade do Tennessee (EUA), Dr. Som Biswas explica que o ChatGPT pode revolucionar a redação médica, acelerando o processo e economizando tempo. Outros benefícios seriam: reunir dados, ajudar nas pesquisas bibliográficas e produzir um documento preliminar que o médico escritor pode então refinar. Esse software tem o poder também de ajudar na eficiência diagnóstica de pacientes, fornecendo um resumo de seus vastos registros médicos com base em seu histórico familiar, resultados de laboratório e sintomas. Como o ChatGPT carece de pensamento crítico e fornece informações de forma redundantee arbitrária, muitos cientistas e periódicos, ainda assim, se opõem a ele.
Na minha opinião, o ChatGPT pode ser uma bênção para a educação e pesquisa médica. Ele tem o potencial de fornecer acesso instantâneo a uma vasta quantidade de informações médicas e pode ajudar estudantes de medicina e pesquisadores na análise de complexos dados médicos. Além disso, pode fornecer experiências de aprendizagem personalizadas para estudantes de medicina, adaptando as informações a seus estilos e preferências de aprendizagem.
As respostas produzidas pelo ChatGPT também são baseadas em padrões e tendências nos dados nos quais foram treinados, portanto, eles nem sempre oferecem um conhecimento completo ou matizado de uma ideia ou situação médica específica. Consequentemente, é crucial garantir que estudantes de medicina e os pesquisadores estejam cientes das limitações da ferramenta e o utilizem como complemento, e não como um substituto de técnicas convencionais de aprendizagem e pesquisa. Considerando tudo isso, o ChatGPT tem potencial para ser uma ferramenta útil na pesquisa e educação médica, mas deve ser usada com cuidado e com consciência de suas limitações.
Se voltarmos um pouco na história, o tímido médico francês René Laennec criou, em 1816, o primeiro estetoscópio por vergonha de ter de encostar o ouvido no peito de suas pacientes e foi inicialmente rechaçado, pois estava criando algo que traria mais distância entre médico e paciente. Quem hoje questiona o valor do estetoscópio?
Seguiremos mostrando nosso conhecimento e nossa capacidade de memorizar e discutir com lógica nossas condutas, mas precisaremos ainda aprender a fazer as perguntas certas para utilizar com sucesso essas novas tecnologias que já fazem parte do dia a dia dos futuros médicos que estão nascendo hoje.
O ChatGPT tem potencial para ser uma ferramenta útil na pesquisa e educação médica, mas deve ser usada com cuidado e com consciência de suas limitações
Dra. Alessandra Morelle
CEO e co-fundadora da Startup Thummi e oncologista do Grupo Oncoclínicas em Porto Alegre (RS)
Kung TH, Cheatham M, Medenilla A, Sillos C, De Leon L, Elepaño C, Madriaga M, Aggabao R, Diaz-Candido G, Maningo J, Tseng V. Performance of ChatGPT on USMLE: Potential for AI-assisted medical education using large language models. PLOS Digit Health. 2023 Feb 9;2(2):e0000198. doi: 10.1371/journal.pdig.0000198. PMID: 36812645; PMCID: PMC9931230.
Biswas SS. Role of Chat GPT in Public Health. Ann Biomed Eng. 2023 May;51(5):868-869. doi: 10.1007/s10439-023-03172-7. Epub 2023 Mar15. PMID: 36920578.
Roguin A. Rene Theophile Hyacinthe Laënnec (1781-1826): the man
behind the stethoscope. Clin Med Res. 2006 Sep;4(3):230-5. doi: 10.3121/
cmr.4.3.230. PMID: 17048358; PMCID: PMC1570491.
Jie Z, Zhiying Z, Li L. A meta-analysis of Watson for Oncology in clinical application. Sci Rep. 2021 Mar 11;11(1):5792.doi:10.1038/s41598-021-84973-5. PMID: 33707577; PMCID: PMC7952578.
Goodman RS, Patrinely JR Jr, Osterman T, Wheless L, Johnson DB. On the cusp: Considering the impact of artificial intelligence language models in healthcare. Med. 2023 Mar 10;4(3):139-140. doi: 10.1016/j.medj.2023.02.008. PMID: 36905924.
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Medicina baseada no sofrimento: um paradigma para a prática da oncologia sob uma perspectiva humanística
Por Prof. Dr. Auro del Giglio
O paciente com câncer nos procura porque sofre. Sofre fisicamente, tem medo do que há por vir, se sente muitas vezes inseguro com as alternativas de tratamento disponíveis e, em casos mais sérios, se defronta com sua própria mortalidade. Neste cenário multidimensional de seu sofrimento, que pode assumir características físicas (dor, náusea, dispneia), psicológicas (depressão, ansiedade), socioeconômicas (medo de não poder trabalhar) e espirituais (significado da vida, enfrentamento da morte), o doente que nos procura espera continência para todas estas facetas do seu sofrimento. Treinados que somos, como médicos, para nos defrontarmos especialmente com a dimensão física, como pessoas não podemos nos omitir de abordar estas outras dimensões do sofrer para as quais, todavia, não temos adequada formação. Como permitir ao médico ser continente destas outras dimensões sem conflito com a prática de uma Medicina Científica (MC) é o paradigma que pretendo introduzir como Medicina Baseada no Sofrimento (MBS). Percebemos que a MBS se foca no sofrimento do paciente, não na sua doença.
A Medicina Baseada no Sofrimento pressupõe a prática da Medicina Científica em sua plenitude baseando-nos nas melhores e mais atualizadas evidências científicas
Ainda que o sofrimento tenha tido início com a doença física, o foco na enfermidade como entidade fisiopatológica, cuja compreensão poderá levar à sua erradicação ou mitigação dos sintomas orgânicos é da MC. A MBS pressupõe assim a prática da MC em sua plenitude baseando-nos nas melhores e mais atualizadas evidências científicas disponíveis. De fato, sem a prática da MC, não pode haver MBS, que serve apenas de complemento à MC, e é praticada em paralelo a ela. Como se pratica a MBS? Penso que devemos seguir a mesma rotina da MC, ou seja, anamnese, integração e interpretação dos achados e proposição de opções terapêuticas. Vamos agora discutir cada uma destas etapas da MBS.
A anamnese do sofrimento do paciente deve compreender os aspectos da sua narrativa de vida e como a enfermidade está mudando essa história. Nos interessam em particular as mudanças laborais, nos relacionamentos familiares e não familiares, o impacto socioeconômico que está se produzindo na vida do doente e de seus dependentes e as implicações espirituais que essa experiência lhe está trazendo. Requer-se do médico interesse, tempo e um ouvido atento para escutar nas entrelinhas do que é falado para captar todas essas informações. O médico deve então incluir todas essas informações e dados e elaborar um construto. Esse será então um construto específico e individualizado para cada paciente do seu sofrimento e servirá de base para as demais etapas da MBS.
A seguir, esse construto deve ser interpretado e nessa etapa necessitamos de habilidade hermenêutica munida de conhecimentos das Humanidades como, por exemplo, a literatura, sociologia, filosofia, antropologia, psicologia e religião. Entendemos por Hermenêutica a capacidade interpretativa que o médico deve ter para poder analisar o construto do sofrimento do paciente e dele extrair ideias para propor uma abordagem terapêutica.
O cerne do tratamento preconizado pela MBS é a ressignificação do sofrimento do paciente a partir da hermenêutica de seu construto do sofrimento. Ao ressignificarmos o sofrimento de um paciente, nós o mitigamos ao lhe ajudarmos a desvelar para si uma nova forma de enfrentá-lo com maior facilidade. Por exemplo, o indivíduo com câncer terminal que consegue resolver preocupações existenciais como a reconciliação com filhos, cônjuges e amigos pode, como resultado do impacto da doença em sua vida, conseguir algo que parecia inatingível antes do seu diagnóstico. O sofrimento lhe trouxe assim uma nova harmonia e paz em seus relacionamentos e essa conquista, portanto, lhe permite ressignificá-lo e assim promovê-lo a um patamar muito mais favorável. Da mesma forma, uma paciente durante um duro período de tratamento quimioterápico adjuvante para câncer de mama pode reconhecer e aceitar que seu relacionamento conjugal é inadequado e lograr uma separação que poderia demorar muitos mais anos sem o advento do câncer. Nesse caso, a doença lhe economizou anos de uma vida insatisfatória e, portanto, a consciência desse fato ressignifica o sofrimento experimentado durante a adjuvância, dando-lhe um outro sentido.
Requer-se do médico interesse, tempo e um ouvido atento para escutar nas entrelinhas do que é falado
A ressignificação pode ainda envolver outros recursos auxiliares como a terapia filosófica e a biblioterapia que podem ser úteis especialmente para auxílio em caso de conflitos existenciais e espirituais. Essas técnicas terapêuticas se baseiam na escolha de textos específicos que abordam problemáticas ora enfrentadas pelos pacientes com o intuito de aprofundar sua reflexão e quiçá auxiliá-los a pautar sua ressignificação. Da mesma forma, o aconselhamento pelo médico sugerindo uma troca de trabalho, ambiente, férias, estratégias para lidar com situações difíceis etc. pode também auxiliar o ser que sofre a melhor enfrentar o sofrimento resultante de sua enfermidade. A MBS, portanto, em paralelo à MC, confere ao médico a possibilidade de, sem nenhum conflito metodológico, focar sua atenção a aspectos não estritamente físicos que compõem o construto multidimensional do sofrimento de cada paciente. Da hermenêutica desse construto, o oncologista poderá abstrair dicas para auxiliar a ressignificação desse sofrimento e assim mitigá-lo. Para isso, precisamos nos treinar a ouvir mais e melhor os nossos pacientes. Precisamos de tempo que não precisa, necessariamente, ser extraído de uma primeira consulta, mas sim de consultas subsequentes. Necessitamos também adquirir uma formação mais sólida das humanidades para aperfeiçoar nossa capacidade hermenêutica. Desta forma, mudanças curriculares serão necessárias para facultar a futuros oncologistas maior sensibilidade para todas as facetas do discurso de seus pacientes. Começamos nossa jornada na oncologia como cientistas e deveríamos, para o bem de nossos doentes, paulatinamente nos convertermos também em humanistas.
Prof. Dr. Auro del Giglio
Professor Livre Docente pela Faculdade de Medicina da USP, Professor Titular de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Medicina do ABC, editor-chefe do Brazilian Journal of Oncology (BJO), associado SBOC e ganhador do Prêmio Ronaldo Ribeiro de Carreira em Oncologia Clínica em 2022.
del Giglio, A. Suffering-based medicine: practicing scientific medicine with a humanistic approach. Med Health Care Philos 2020 Jun;23(2):215-219.
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Por mais investimentos públicos contra o câncer no Brasil
Dr. Carlos Gil Ferreira
Dr. Gustavo Fernandes
Com a estimativa de mais de 2 milhões de novos casos e 700 mil mortes no triênio 2023-2025¹, o câncer deve se tornar a doença que mais tira vidas no Brasil já em 2027, e tal problema precisa ser tratado de forma central na agenda da saúde pública do país. Atentem: o número de mortes por câncer é próximo aos causados pela covid-19 – a maior pandemia da nossa história recente. Por isso, se faz cada vez mais urgente reduzir o impacto do câncer em nossa sociedade e falarmos a respeito sem rodeios ou delongas.
Em 2022, o investimento em tratamento de câncer pelo Sistema Único de Saúde (SUS) somou apenas 3% dos recursos totais destinados à saúde no país, com valor total investido de R$ 4 bilhões. Para efeito comparativo, o governo federal investiu, apropriadamente, diga-se, R$ 38 bilhões somente em vacinas para covid-19, ou seja, cerca de dez vezes o investimento em câncer. O investimento no combate à pandemia é racional, mas é irracional o limitado investimento em políticas de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento do câncer.
Os cânceres de mama, próstata, pulmão e intestino são os mais comuns e lideraram o uso de recursos em tratamento oncológico no SUS no ano passado, representando 54% do total destinado à área. Esses recursos, embora proporcionalmente elevados, são nominalmente insuficientes e não há programas de prevenção ou diagnóstico precoce implantados para nenhum destes tumores².
É preciso, urgentemente, implantar políticas de prevenção e diagnóstico precoce para os tumores mais comuns em todo o território nacional"
Além de investimento proporcional ao impacto do câncer na sociedade, é preciso, urgentemente, implantar políticas de prevenção e diagnóstico precoce para os tumores mais comuns em todo o território nacional. Tais ações são nossa “vacina” contra casos avançados e mortes, além de evitarem muito sofrimentos nos lares e altos custos ao SUS e à toda a sociedade.
Sensibilizado pela necessidade gritante de ações na área, o Congresso Nacional tem buscado alternativas para o enfrentamento do câncer em diferentes Projetos de Lei (PL). De autoria do deputado federal Dr. Frederico, o PL nº 3070/2021 estabelece que a disponibilização dos tratamentos oncológicos deverá ocorrer em até 180 dias após a recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia do SUS (Conitec). Já o PL nº 2952/2022, proposto pelos deputados Weliton Prado e Silvia Cristina, tem como objetivo instituir a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do SUS.
A falta de atualização adequada dos valores de procedimentos tem levado a atrasos na oferta de tratamentos incorporados e à desigualdade no acesso. Estudos revelam a existência de diferentes categorias de hospitais, com alguns oferecendo opções terapêuticas superiores às diretrizes do Ministério da Saúde, enquanto outros não conseguem oferecer os tratamentos previstos. Diante desses problemas, a proposta da SBOC visa aprimorar o modelo de financiamento da atenção oncológica e implementar medidas para garantir o acesso oportuno e igualitário aos antineoplásicos no SUS.
Ao investir de forma estratégica no enfrentamento do câncer, o país não apenas demonstrará seu compromisso com o bem-estar dos cidadãos, mas também proporcionará esperança e alívio a milhões de famílias.
Dr. Carlos Gil Ferreira
é médico oncologista clínico e Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica
(SBOC)
Dr. Gustavo Fernandes
é médico oncologista clínico e ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica
(Gestão 2015-2017)
¹ INCA, Instituto Nacional de Câncer. Estimativa 2023 – Incidência de Câncer no Brasil. https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/noticias/2022/inca-estima-704-mil-casos-de-cancer-por-ano-no-brasil-ate-2025
² Observatório de Oncologia, Centro de Estudos da Fiocruz(CEE) e Movimento Todos Juntos Contra o Câncer. “Quanto custa o câncer?”. 2023.
*Trechos deste artigo foram, originalmente, publicados pelo jornal Correio Braziliense em 1º de setembro de 2023.
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