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SBOC REVIEW

Alocação justa de recursos médicos escassos em tempos de COVID-19

Resumo do artigo:

A COVID-19 é oficialmente uma pandemia que já atingiu mais de 120 países. Os impactos reais da pandemia ainda são incertos, porém o potencial de trazer sobrecarga aos sistemas de saúde é real. Diversos países já vêm enfrentando esse problema e buscando soluções. Nos Estados Unidos, profissionais de saúde estão reutilizando mascaras N-95 que deveriam ser usadas apenas uma vez; médicos italianos estão admitindo em UTI apenas pacientes com mais chances de sobreviver; e na Coreia do Sul diversos pacientes morreram em casa enquanto aguardavam um leito para internação.

Estima-se que uma pessoa infectada pelo coronavírus possa infectar outras duas. Uma estimativa conservadora sugere que 5% da população pode estar infectada em três meses. Dados chineses sugerem que 80% dos pacientes infectados são assintomáticos ou têm sintomas leves. Aproximadamente 20% necessitaram de atenção médica hospitalar. A taxa de mortalidade varia bastante de 0.25% a 3% e é maior em pacientes idosos ou com comorbidades (em especial doença cardiovascular e diabetes).

Mesmo em países desenvolvidos como os Estados Unidos, existe um potencial de esgotamento rápido de recursos materiais e humanos necessários para tratar a quantidade rápida de pacientes que se infecta pelo novovírus e necessitão de leitos de UTI, ventiladores e profissionais especializados. Medidas de saúde pública como o distanciamento social, o cuidado com a higiene das mãos e a etiqueta da tosse podem reduzir a velocidade de pacientes novos infectados e reduzir o potencial de esgotamento de recursos médicos.

Pesquisas sobre alocação de recursos escassos em pandemia convergem em quatro valores fundamentais: 1) Maximizar os benefícios com recursos escassos – que pode ser operacionalizado salvando-se o máximo de pessoas possíveis ou salvando o máximo de anos de vida possível, isto é, priorizando indivíduos com maior propensão de sobreviver por mais tempo após tratamento. 2) Tratar de modo igualitário – pode ser operacionalizado tratando indivíduos por ordem de chegada ou através de seleção aleatória por exemplo. 3) Promover e recompensar o valor instrumental – pode ser operacionalizado dando-se prioridade para pacientes que podem salvar outros indivíduos ou que salvaram outros indivíduos no passado. 4) Priorizar o pior – pode ser operacionalizado dando-se prioridade para tratar os mais graves ou os mais jovens, que teriam vivido por menos tempo se morressem sem tratamento. Essas propostas de alocação de recursos envolvem aspectos éticos complexos e nenhuma é suficiente sozinha para se determinar quem deve receber tratamento com recursos escassos.

O artigo apresenta seis recomendações para alocação de recursos na pandemia de COVID-19. As recomendações são baseadas nos quatro valores fundamentais acima.

Recomendação 1: Maximizar os benefícios é o mais importante. Salvar o máximo de vidas possível e salvar o máximo de anos de vida possível. A equalização dessas duas variáveis pode ser um desafio ético grande. A operacionalização dessa recomendação significa que o tratamento deve ser priorizado nos pacientes com mais chances de se recuperar após o tratamento em relação aos pacientes com menos chance de se recuperar após tratamento ou que se recuperariam mesmo sem o tratamento. Isso acaba indo de encontro com o valor de tratar o pior na medida em que prioriza o paciente mais jovem, com maior chance de se recuperar e que teria vivido menos em caso de morte sem assistência. Essa recomendação vai também no sentido de remover do ventilador um paciente com baixa chance de sobreviver e alocar esse recurso para outro paciente com maior chance de sobreviver. Por mais traumático e doloroso que isso possa parecer, os autores defendem essa medida em situações extremas de escassez de recursos.

Recomendação 2: Priorizar trabalhadores da saúde que estão na linha de frente do combate à pandemia e outros trabalhadores com funções críticas no enfrentamento da doença. A justificativa é de que a morte e a incapacidade de tais trabalhadores agravariam ainda mais os efeitos devastadores da epidemia. Priorizar pessoas críticas não pode ser confundido com priorizar pessoas poderosas, famosas, ricas ou políticos não relacionados ao combate à pandemia. Tais abusos devem ser combatidos.

Recomendação 3: Para indivíduos com prognóstico semelhante, a alocação de recursos deve ser feita de maneira aleatória e não baseada em ordem de chegada. O objetivo é não prejudicar pacientes que moram longe dos hospitais e não penalizar aquele que adoeceu por último por, provavelmente, ter aderido de forma mais adequada às medidas de saúde pública de isolamento social. Também tem como objetivo evitar aglomerações e violência em caso de alocação de tratamento ou vacina.

Recomendação 4: Os guidelines de tratamento devem ser baseados em evidencia cientifica e diferenciados pelo tipo de intervenção. Por exemplo, a COVID-19 é mais grave e letal em pacientes idosos e com comorbidades, portanto recursos destinados à prevenção (como vacinas) e diagnóstico (testes para detecção do vírus) devem ser priorizados para esses pacientes em relação aos pacientes mais jovens. No entanto, medidas de tratamento como internação em UTI, tratamentos experimentais e ventiladores devem ser priorizados para aqueles pacientes com maior possibilidade de cura e com maior quantidade de anos de vida a serem salvos.

Recomendação 5: Os pacientes que aceitam participar de estudos experimentais com terapias novas ou vacinas devem ser priorizados. Tais pacientes assumem os riscos inerentes da pesquisa para ajudar outros pacientes e devem ser recompensados por isso.

Recomendação 6: Não deve haver diferenciação na alocação de recursos entre os pacientes com COVID-19 e aqueles com outras doenças. Se os recursos forem escassos para todos, esses valores devem ser utilizados para outras doenças. Por exemplo: se um trabalhador da saúde tem um choque anafilático e necessita de ventilação mecânica, ele deve ser priorizado em relação a um paciente com COVID-19 que não seja um trabalhador da saúde.

 

Fair Allocation of Scarce Medical Resources in the Time of COVID-19. Emanuel et al. N Engl J Med. 2020 Mar 23.
Alocação justa de recursos médicos escassos em tempos de COVID-19.

 

Comentário do avaliador científico:
Artigo interessante que traz recomendações em caso de escassez de recursos dentro do sistema de saúde. Muito importante, pois essa já é a realidade de alguns países como Itália e Espanha. Além disso, diante das dificuldades do SUS, que normalmente já apresenta algum grau de escassez de leitos de UTI, profissionais da saúde e ventiladores mecânicos, essa pode ser muito em breve a realidade do Brasil. Cabe ao governo e às instituições de saúde elaborar estratégias para minimizar a escassez de recursos materiais e humanos, e elaborar guidelines de enfrentamento da escassez, caso isso venha ocorrer.

 

Avaliador científico e editor:
Dr. Daniel da Motta Girardi
Filiações: Oncologista clínico do Hospital Sírio-Libanês Brasília e do Hospital de Base do Distrito Federal. Advanced fellow no programa de tumores geniturinários do National Cancer Institute, Bethesda, Estados Unidos da América.